A historiadora tarda, mas não falha: depois de um hiato um pouco longo, eu finalmente tenho algo a dizer novamente. Sejam muito bem-vindas e bem-vindos novamente!
Talvez não fosse de se esperar que um dos principais museus sobre a Segunda Guerra Mundial dos Estados Unidos fique em Nova Orleans e não, por exemplo, em São Francisco, que foi uma cidade extremamente importante para o front do Pacífico. Mas é nela que está o Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial (que vou abreviar para WWIINM, sua sigla em inglês) e hoje vou contar para vocês sobre minha passagem por ele.
No site do museu, explica-se que, na Louisiana, eram construídos os barcos Higgins, que traziam os soldados americanos de volta para casa durante a guerra, e essa seria a razão para o museu estar em NOLA.
O enfoque do WWIINM é militar. A maioria das exposições conta o trajeto das expedições e batalhas vividas pelo exército dos Estados Unidos nos variados fronts em que o país atuou na Guerra. Alguns deles nós sequer falamos muito (pelo menos no Brasil), como as lutas ocorridas nas Filipinas, no Mar de Coral na Austrália e na China no front do Pacífico contra o Japão. Isso ajuda, inclusive, a termos uma ideia do porquê a Segunda Guerra é considerada sim mundial, embora muitas vezes os filmes e livros didáticos façam parecer que ela tenha se concentrado somente na Europa e no extremo leste da Ásia.
Esse foco militar faz sentido, pois, diferentemente dos europeus, que viveram os aspectos mais políticos e sociais do dia a dia da ascensão do nazi-fascismo, o que os Estados Unidos viveram da Segunda Guerra foi o seu lado mais bélico. Foi essa participação no conflito, inclusive, que consolidou os EUA como uma potência militar, e isso se tornou praticamente um aspecto cultural do país. Assim, os americanos gostam de história militar, fazendo com que o modelo do museu seja ainda mais atrativo para a população local.
Cartazes mostrando os dirigentes de cada lado envolvidos no front do Pacífico. Do lado do Eixo, está o imperador japonês Hirohito. Do lado dos aliados, está Roosevelt (EUA) Churchill (Reino Unido), e Chiang Kai-shek, general e chefe de governo da China. Stalin e a URSS passaram a maior parte da Guerra fora desse front devido a um acordo de neutralidade com o Japão em 1941 para focar na luta contra a Alemanha nazista. Por outro lado, isso abriu espaço para o Japão se expandir para os diversos países sul-asiáticos onde os EUA e a Inglaterra lutariam.
O espaço físico do museu é gigantesco. Ele está dividido em duas partes conectadas por uma passarela que tomam uma quadra inteira cada. As exposições são várias e interligadas, construindo uma narrativa que segue a cronologia dos acontecimentos. Isso por si só é interessante, pois permite ao visitante acompanhar a história de forma contextualizada e humanizada.
Falando em humanização, esse certamente é um dos pontos fortes do WWIINM. Sua abordagem do aspecto mais militar da guerra não é voltada para tanques e navios, mas sim para os soldados que lutaram com esses equipamentos e os lugares por onde eles passaram. As exposições são montadas não somente com vitrines expondo itens catalogados (embora existam várias delas também), mas principalmente nos ambientando na atmosfera do front.
De uma sala com painéis contextualizando os eventos daquela seção, você entra em uma floresta com metralhadoras montadas atrás de barricadas ou em meio aos escombros de uma cidade. Em uma floresta congelada relativa ao caminho para Berlim, há até mesmo um jogo de luzes para simular a noite, a neve e explosões acompanhadas de seus respectivos som, além de gravações das transmissões de rádio da época que recriam momentos da guerra para você se sentir na pele dos soldados.
Como vocês podem ver nas fotos, há a montagem de cenários realistas inclusive contextualizando armamentos. Você pode imaginar um soldado se arrastando na mata e, ao se levantar um pouco, se deparar com o cano de uma metralhadora na cara. E as placas com as distâncias mostram o quão longe de casa esses soldados estavam e o quanto ainda precisavam percorrer.
Há ainda, por todos os espaços, “estações” de materiais complementares nas quais você pode assistir relatos em vídeo de veteranos de guerra, ver mais fotografias, modelos 3D de armas e mapas dinâmicos. Em algumas, se você utilizar sua Dog Tag, você ainda pode ver a relação daquela exposição com o soldado que está registrado nela, acompanhando sua trajetória na guerra. Nem sempre ele é um sobrevivente; o meu soldado serviu junto de seus dois irmãos, que voltaram para casa com vida, mas ele não.
Mas o que são as Dog Tags? Para quem não sabe, esse é o nome em inglês daquelas plaquinhas de identificação que militares costumam trazer penduradas no pescoço. No Museu, as Dog Tags são cartões que os visitantes recebem e nos quais criam um login no sistema da instituição para ter acesso, por exemplo, à história de seu soldado selecionado. Elas também nos permitem adicionar alguns itens como vídeos e imagens das estações de conteúdo complementar em um acesso permanente que temos pela internet a partir do número da Dog Tag. Eu pessoalmente achei isso muito legal, pois nos permite relembrar o que vimos no museu e ainda visualizar outros materiais educativos. Como historiadora, ter acesso a esse tipo de material é sempre produtivo.
Ao longo dos circuitos que são as exposições, há também salas com vídeos que você pode sentar para assistir. No espaço dedicado à passagem dos estadunidenses pela Itália, houve um que me chamou a atenção porque continha relatos de soldados nipo-americanos, algo que raramente vemos ser abordado. A briga do Japão com os EUA era particularmente intensa por conta dos ataques japoneses à base americana de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Para esses soldados, portanto, havia uma questão de honra ainda maior em vencer o Eixo: “Não estávamos lutando só pelo país. Estávamos lutando por nós, por nossas famílias, pela comunidade japonesa nos EUA”. Vencer esse inimigo era vencer também um estigma criado por ele sobre os imigrantes e descendentes de japoneses residentes em solo estadunidense.
E os objetos expostos? As famosas vitrines de museu no WWIINM trazem objetos diversos: as armas tipicamente usadas por cada lado, uniformes, utensílios de cirurgia ainda manchados de sangue, objetos pessoais de soldados e até mesmo um aparelho portátil de raios-x.
Algumas vitrines traziam uma narrativa mais clara, como uma dedicada a um soldado morto em combate com fotos suas com sua namorada, alguns objetos pessoais e algumas cartas manuscritas que ele escreveu para sua mãe. Podemos imaginá-lo ali, rabiscando aquela caligrafia, para depois chegarmos em um documento datilografado prestando as condolências a sua família por sua morte.
Cópia da carta manuscrita do soldado Willard para sua mãe. Ele não sobreviveu.
A relevância da contextualização e humanização no museu está em mostrar de perto os horrores da guerra. Em um mundo cheio de filmes heroicos e videogames de guerra, muitas vezes estar no front pode parecer muito fácil, apenas uma questão de ser esperto, de ter boa mira. Mas a realidade não é bem assim – quando você leva um tiro, usar um kit de primeiros socorros instantâneo não vai te colocar imediatamente de volta no campo, isso quando o ferimento não te matar imediatamente.
Quando se está longe, há uma glamourização da guerra. Contavam meus avós que ao longo dos anos 1940 houve grande pressão para o Brasil entrar na guerra. Porém, quando de fato isso aconteceu, houve um desespero geral, pois aqueles que haviam feito as cobranças perceberam que aquilo significava mandar seus filhos para uma luta mortal. Por isso, mostrar a realidade de guerra de forma tão concreta como o WWIINM tem um poder educador e reflexivo bastante importante.
Embora o foco do WWIINM seja militar, é impossível passar pelo assunto da Segunda Guerra sem falar sobre o Holocausto, que tem um aspecto mais social e político do que militar. Enquanto na Europa os interessados na história têm acesso físico aos campos de concentração, hoje preservados em nome da memória daqueles que ali foram assassinados, nos Estados Unidos é necessário recorrer a outros meios. Assim, da mesma maneira como os outros circuitos do museu recriam espaços da guerra, foi montada uma sala que faz referência aos galpões onde os prisioneiros ficavam confinados. Há também um espaço dedicado a Anne Frank e à casa onde ela morou escondida até sua família ser descoberta, mas não tirei fotos.
Depois que terminamos as partes relativas à guerra, há algumas galerias dedicada à reconstrução da democracia. Por conta do horário de fechamento do museu, tive que passar meio rapidamente por elas, mas as reflexões evocadas ali estão relacionadas à contradição dos Estados Unidos lutarem contra os países racistas do Eixo enquanto em seu próprio território havia grande discriminação racial.
Houve um aspecto, no entanto, que me deixou incomodada sobre esse museu e também outros que visitei não só em Nova Orleans. Uma quantidade considerável dos funcionários que nos guiam e direcionam nesses espaços são voluntários, o que por um lado é muito bacana, pois mostra o compromisso dessas pessoas com a cultura. Por outro, me faz pensar em como é muito conveniente para os gestores dessas instituições utilizar uma massa de trabalho voluntário em detrimento de contratar profissionais qualificados e pagar salários.
É fato que existe uma cultura de trabalho voluntário e participação na comunidade nos Estados Unidos, assim como também é verdade que instituições culturais tendem a não ter muitos recursos financeiros em comparação com outros tipos de serviços. Entretanto, como historiadora que teve que recorrer a uma segunda profissão por conta da escassez de empregos e que conhece uma infinidade de outros historiadores de formação na mesma situação, é difícil não sentir um pouco de tristeza com essa predominância de voluntários em cargos relacionados à história e à memória. De qualquer maneira, isso não tira a qualidade do museu nem o mérito desses voluntários.
Sala que mostrava um vídeo sobre a Operação Overlord, iniciada no dia 6 de junho de 1944, o famoso Dia D. O espaço simula a cabine de um avião e é possível ver recortes de jornal e mapas da operação expostos nas paredes.
Por fim, a maneira como o Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial organizou suas exposições é especial porque ela torna os acontecimentos concretos. Sua experiência é imersiva e sensível, e bem menos chauvinista do que eu esperava. Do ponto de vista de Museologia e Educação Histórica, ele é sensacional. Há claramente uma curadoria muito competente no museu e trabalho sério sendo feito ali. A todos que visitarem Nova Orleans, essa é uma visita muito recomendada e requer pelo menos um dia inteiro, pois vale muito a pena passar pela cronologia da guerra com calma, refletindo sobre cada espaço que temos ali.