Uma passagem pelo Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial em Nova Orleans, Estados Unidos

Talvez não fosse de se esperar que um dos principais museus sobre a Segunda Guerra Mundial dos Estados Unidos fique em Nova Orleans e não, por exemplo, em São Francisco, que foi uma cidade extremamente importante para o front do Pacífico. Mas é nela que está o Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial (que vou abreviar para WWIINM, sua sigla em inglês) e hoje vou contar para vocês sobre minha passagem por ele.

No site do museu, explica-se que, na Louisiana, eram construídos os barcos Higgins, que traziam os soldados americanos de volta para casa durante a guerra, e essa seria a razão para o museu estar em NOLA.

O enfoque do WWIINM é militar. A maioria das exposições conta o trajeto das expedições e batalhas vividas pelo exército dos Estados Unidos nos variados fronts em que o país atuou na Guerra. Alguns deles nós sequer falamos muito (pelo menos no Brasil), como as lutas ocorridas nas Filipinas, no Mar de Coral na Austrália e na China no front do Pacífico contra o Japão. Isso ajuda, inclusive, a termos uma ideia do porquê a Segunda Guerra é considerada sim mundial, embora muitas vezes os filmes e livros didáticos façam parecer que ela tenha se concentrado somente na Europa e no extremo leste da Ásia.

Esse foco militar faz sentido, pois, diferentemente dos europeus, que viveram os aspectos mais políticos e sociais do dia a dia da ascensão do nazi-fascismo, o que os Estados Unidos viveram da Segunda Guerra foi o seu lado mais bélico. Foi essa participação no conflito, inclusive, que consolidou os EUA como uma potência militar, e isso se tornou praticamente um aspecto cultural do país. Assim, os americanos gostam de história militar, fazendo com que o modelo do museu seja ainda mais atrativo para a população local.

Cartazes mostrando os dirigentes de cada lado envolvidos no front do Pacífico. Do lado do Eixo, está o imperador japonês Hirohito. Do lado dos aliados, está Roosevelt (EUA) Churchill (Reino Unido), e Chiang Kai-shek, general e chefe de governo da China. Stalin e a URSS passaram a maior parte da Guerra fora desse front devido a um acordo de neutralidade com o Japão em 1941 para focar na luta contra a Alemanha nazista. Por outro lado, isso abriu espaço para o Japão se expandir para os diversos países sul-asiáticos onde os EUA e a Inglaterra lutariam.

O espaço físico do museu é gigantesco. Ele está dividido em duas partes conectadas por uma passarela que tomam uma quadra inteira cada. As exposições são várias e interligadas, construindo uma narrativa que segue a cronologia dos acontecimentos. Isso por si só é interessante, pois permite ao visitante acompanhar a história de forma contextualizada e humanizada.

Falando em humanização, esse certamente é um dos pontos fortes do WWIINM. Sua abordagem do aspecto mais militar da guerra não é voltada para tanques e navios, mas sim para os soldados que lutaram com esses equipamentos e os lugares por onde eles passaram. As exposições são montadas não somente com vitrines expondo itens catalogados (embora existam várias delas também), mas principalmente nos ambientando na atmosfera do front.

De uma sala com painéis contextualizando os eventos daquela seção, você entra em uma floresta com metralhadoras montadas atrás de barricadas ou em meio aos escombros de uma cidade. Em uma floresta congelada relativa ao caminho para Berlim, há até mesmo um jogo de luzes para simular a noite, a neve e explosões acompanhadas de seus respectivos som, além de gravações das transmissões de rádio da época que recriam momentos da guerra para você se sentir na pele dos soldados.

Como vocês podem ver nas fotos, há a montagem de cenários realistas inclusive contextualizando armamentos. Você pode imaginar um soldado se arrastando na mata e, ao se levantar um pouco, se deparar com o cano de uma metralhadora na cara. E as placas com as distâncias mostram o quão longe de casa esses soldados estavam e o quanto ainda precisavam percorrer.

Há ainda, por todos os espaços, “estações” de materiais complementares nas quais você pode assistir relatos em vídeo de veteranos de guerra, ver mais fotografias, modelos 3D de armas e mapas dinâmicos. Em algumas, se você utilizar sua Dog Tag, você ainda pode ver a relação daquela exposição com o soldado que está registrado nela, acompanhando sua trajetória na guerra. Nem sempre ele é um sobrevivente; o meu soldado serviu junto de seus dois irmãos, que voltaram para casa com vida, mas ele não.

Mas o que são as Dog Tags? Para quem não sabe, esse é o nome em inglês daquelas plaquinhas de identificação que militares costumam trazer penduradas no pescoço. No Museu, as Dog Tags são cartões que os visitantes recebem e nos quais criam um login no sistema da instituição para ter acesso, por exemplo, à história de seu soldado selecionado. Elas também nos permitem adicionar alguns itens como vídeos e imagens das estações de conteúdo complementar em um acesso permanente que temos pela internet a partir do número da Dog Tag. Eu pessoalmente achei isso muito legal, pois nos permite relembrar o que vimos no museu e ainda visualizar outros materiais educativos. Como historiadora, ter acesso a esse tipo de material é sempre produtivo.

Ao longo dos circuitos que são as exposições, há também salas com vídeos que você pode sentar para assistir. No espaço dedicado à passagem dos estadunidenses pela Itália, houve um que me chamou a atenção porque continha relatos de soldados nipo-americanos, algo que raramente vemos ser abordado. A briga do Japão com os EUA era particularmente intensa por conta dos ataques japoneses à base americana de Pearl Harbor em dezembro de 1941. Para esses soldados, portanto, havia uma questão de honra ainda maior em vencer o Eixo: “Não estávamos lutando só pelo país. Estávamos lutando por nós, por nossas famílias, pela comunidade japonesa nos EUA”. Vencer esse inimigo era vencer também um estigma criado por ele sobre os imigrantes e descendentes de japoneses residentes em solo estadunidense.

E os objetos expostos? As famosas vitrines de museu no WWIINM trazem objetos diversos: as armas tipicamente usadas por cada lado, uniformes, utensílios de cirurgia ainda manchados de sangue, objetos pessoais de soldados e até mesmo um aparelho portátil de raios-x.

Algumas vitrines traziam uma narrativa mais clara, como uma dedicada a um soldado morto em combate com fotos suas com sua namorada, alguns objetos pessoais e algumas cartas manuscritas que ele escreveu para sua mãe. Podemos imaginá-lo ali, rabiscando aquela caligrafia, para depois chegarmos em um documento datilografado prestando as condolências a sua família por sua morte.

Cópia da carta manuscrita do soldado Willard para sua mãe. Ele não sobreviveu.

A relevância da contextualização e humanização no museu está em mostrar de perto os horrores da guerra. Em um mundo cheio de filmes heroicos e videogames de guerra, muitas vezes estar no front pode parecer muito fácil, apenas uma questão de ser esperto, de ter boa mira. Mas a realidade não é bem assim – quando você leva um tiro, usar um kit de primeiros socorros instantâneo não vai te colocar imediatamente de volta no campo, isso quando o ferimento não te matar imediatamente.

Quando se está longe, há uma glamourização da guerra. Contavam meus avós que ao longo dos anos 1940 houve grande pressão para o Brasil entrar na guerra. Porém, quando de fato isso aconteceu, houve um desespero geral, pois aqueles que haviam feito as cobranças perceberam que aquilo significava mandar seus filhos para uma luta mortal. Por isso, mostrar a realidade de guerra de forma tão concreta como o WWIINM tem um poder educador e reflexivo bastante importante.

Embora o foco do WWIINM seja militar, é impossível passar pelo assunto da Segunda Guerra sem falar sobre o Holocausto, que tem um aspecto mais social e político do que militar. Enquanto na Europa os interessados na história têm acesso físico aos campos de concentração, hoje preservados em nome da memória daqueles que ali foram assassinados, nos Estados Unidos é necessário recorrer a outros meios. Assim, da mesma maneira como os outros circuitos do museu recriam espaços da guerra, foi montada uma sala que faz referência aos galpões onde os prisioneiros ficavam confinados. Há também um espaço dedicado a Anne Frank e à casa onde ela morou escondida até sua família ser descoberta, mas não tirei fotos.

Depois que terminamos as partes relativas à guerra, há algumas galerias dedicada à reconstrução da democracia. Por conta do horário de fechamento do museu, tive que passar meio rapidamente por elas, mas as reflexões evocadas ali estão relacionadas à contradição dos Estados Unidos lutarem contra os países racistas do Eixo enquanto em seu próprio território havia grande discriminação racial.

Houve um aspecto, no entanto, que me deixou incomodada sobre esse museu e também outros que visitei não só em Nova Orleans. Uma quantidade considerável dos funcionários que nos guiam e direcionam nesses espaços são voluntários, o que por um lado é muito bacana, pois mostra o compromisso dessas pessoas com a cultura. Por outro, me faz pensar em como é muito conveniente para os gestores dessas instituições utilizar uma massa de trabalho voluntário em detrimento de contratar profissionais qualificados e pagar salários.

É fato que existe uma cultura de trabalho voluntário e participação na comunidade nos Estados Unidos, assim como também é verdade que instituições culturais tendem a não ter muitos recursos financeiros em comparação com outros tipos de serviços. Entretanto, como historiadora que teve que recorrer a uma segunda profissão por conta da escassez de empregos e que conhece uma infinidade de outros historiadores de formação na mesma situação, é difícil não sentir um pouco de tristeza com essa predominância de voluntários em cargos relacionados à história e à memória. De qualquer maneira, isso não tira a qualidade do museu nem o mérito desses voluntários.

Sala que mostrava um vídeo sobre a Operação Overlord, iniciada no dia 6 de junho de 1944, o famoso Dia D. O espaço simula a cabine de um avião e é possível ver recortes de jornal e mapas da operação expostos nas paredes.

Por fim, a maneira como o Museu Nacional da Segunda Guerra Mundial organizou suas exposições é especial porque ela torna os acontecimentos concretos. Sua experiência é imersiva e sensível, e bem menos chauvinista do que eu esperava. Do ponto de vista de Museologia e Educação Histórica, ele é sensacional. Há claramente uma curadoria muito competente no museu e trabalho sério sendo feito ali. A todos que visitarem Nova Orleans, essa é uma visita muito recomendada e requer pelo menos um dia inteiro, pois vale muito a pena passar pela cronologia da guerra com calma, refletindo sobre cada espaço que temos ali.

Mesmo em hiato, 8 anos de Smoka Fábrica

Nesta semana, o Smoka Fábrica está completando 8 anos no ar. Os últimos dois anos foram de pouca atividade, é verdade, mas isso não quer dizer que o blog morreu. Este hiato mais prolongado do que eu gostaria se dá por mais de uma razão.

O primeiro é que em 2021 estive mais ativa em outro blog, o Arklay’s Library, dedicado a falar de Resident Evil e história, um sonho antigo que tornei realidade.

O segundo e mais recente são as reviravoltas da vida. Este sempre foi um blog muito voltado para a história, para as discussões sobre educação, e sempre foi muito dependente dos meus estudos, assim como o próprio Arklay’s. No entanto, as circunstâncias da vida – a baixa demanda por profissionais de ciências humanas, poucas vagas para professores, o desrespeito que o historiador tem recebido em tempos de fake news e bolsonarismo – me obrigaram a tomar outros rumos na vida e a me afastar de meus estudos históricos. Eu não tenho orgulho disso e sinto mesmo é uma tristeza profunda, e foi muito difícil de aceitar que o que eu precisava era uma mudança de área. Hoje estou me encaminhando para outra área, mais prática para o mercado, que no momento é uma questão de garantir meu futuro. O que vier depois para a História é isso…depois.

O que eu tenho que dizer é que esses últimos oito anos com este blog foram incríveis. Eu alcancei públicos longínquos e o texto A desvalorização da educação no Brasil é um problema endêmico é, há algum tempo, um dos primeiros resultados do Google para a pesquisa “desvalorização da educação no brasil”. Hoje esse texto tem mais de 12 mil visualizações por falantes de português em mais de 30 países do mundo. Esse tipo de coisa mostra que, ainda que a mobilização coletiva seja prioritária e fundamental, às vezes também conseguimos fazer a diferença individualmente.

Por isso eu acredito tanto na necessidade de escrever, de continuar os blogs, de criar espaços de conteúdo de qualidade que atinjam as pessoas. Mesmo blogs, canais no YouTube ou páginas de instagram podem ter impacto ao mudar os preconceitos de alguém, a gerar uma reflexão ou a ver o mundo de forma diferente. Mesmo que você tenha 5 leitores. São 5 pessoas dispostas a ler o que você está escrevendo que podem espalhar isso para outras 5, que espalham para mais 5, até chegar em centenas. Ou quem sabe em 12 mil. Isso é muito importante em um mundo em que fake news, pseudociência e opiniões metidas a verdade ganham tanto espaço e financiamento.

Outros textos que tenho que não foram tão longe também são muito importantes para mim. O blog me ajudou a desenvolver ideias que não necessariamente iriam para artigos científicos ou para meus trabalhos da faculdade, tanto sobre ou derivados de minhas pesquisas quanto assuntos que não passavam nem perto dela, mas que eu gosto ou me interesso. Com isso, busquei trazer também um pouco do trabalho prático do historiador, para além de resultados de pesquisa. Por isso escrevi sobre como um cemitério pode ser uma fonte histórica, sobre a sensibilidade envolvida nas escavações feitas por arqueólogos egípcios e muçulmanos em seu país, sobre a comparação entre uma pequena cidade moderna e uma grande cidade medieval.

Eu sinto muita falta de escrever. Se eu pudesse passar a minha vida escrevendo, provavelmente é o que eu faria. Ah, se eu ganhasse na loteria eu definitivamente ia me tornar escritora em tempo integral! Eu achava que minha escrita tinha morrido. Mas nas últimas semanas, em que voltei a botar no papel (ou no Evernote) todas as coisas que estavam na minha cabeça, cada ideia pequena que eu tinha de repente já tinha pelo menos umas 600 palavras. Foi aí eu percebi o quanto eu eu estava com saudade de escrever.

Quando escrevo, eu até me perco um pouco do mundo. Continua sendo minha atividade favorita. E por isso eu não quero deixar esse blog morrer, mesmo que os textos fiquem bem espaçados. Não percam a fé em mim, por favor!

Muito obrigada a todos e todas que passaram por aqui nesses últimos oito anos. É quase uma década dando pitadinhas de reflexão e atingindo públicos que eu não podia imaginar. Isso mexe muito comigo como pessoa e me tornou uma historiadora muito melhor. E pessoa também.

Entrevista especial: 35 anos após Chernobyl e um pouco mais

Hoje, trago algo diferente aqui para o blog. Tanto diferente dentro dos assuntos que costumo trazer quanto do que se costuma falar sobre o tema deste texto. Espero que gostem e que aproveitem todo o conhecimento contido aqui. Sei que é longo, mas vale muito a pena tirar um tempinho para ler!

O pior acidente nuclear que a humanidade já presenciou aconteceu há exatos 35 anos: na madrugada de 26 de abril de 1986, o Reator 4 da Usina V.L. Lenin seria desligado para uma manutenção de rotina. Porém, antes disso, ocorreria um teste para verificar por quanto tempo as turbinas continuariam funcionando, o que é bastante perigoso.


‘Antes do teste, que foi realizado nas primeiras horas do dia 26 de abril, os sistemas de desligamento automático foram desabilitados. À medida que o fluxo da água de refrigeração diminuiu, a produção de energia aumentou. As coisas deram errado e, quando o operador tentou desativar o reator (que estava num estado instável), uma peculiaridade do projeto levou a um aumento dramático na saída de energia. A temperatura aumentou rapidamente, causando a ruptura de parte do núcleo de combustível. Isso permitiu que partículas de combustível entrassem em contato com a água refrigeradora e reagissem com ela, resultando numa explosão que destruiu o núcleo do reator. Uma segunda explosão trouxe consequências ainda piores: fragmentos de combustível em chamas foram expelidos do reator, incluindo o moderador de grafite (que é usado para absorver os nêutrons no núcleo), que também entrou em combustão. O grafite queimou por 9 dias, liberando de 12 a 14 10¹⁸ bequeréis na atmosfera — 400 vezes a Bomba de Hiroshima.’ – Revista Polyteck, 2014

Muitas pessoas entraram em contato com detalhes do que aconteceu em Chernobyl – talvez pela primeira vez – com a série produzida pela HBO em 2019. Isso gerou um turbilhão de dúvidas sobre quais acontecimentos eram reais ou não, e, por mais que haja algumas imprecisões, algumas passagens de tempo rápidas demais e algumas liberdades artísticas, muito do que vemos nela – como os voluntários indo recolher o grafite, os bombeiros entrando na água no porão da usina, o sofrimento das pessoas expostas a altas doses de radiação, a cena de Akimov sendo obrigado a olhar o reator de cima (algo que me marcou muito, pois ele sabia que com aquilo estava condenado) – aconteceu de fato.

Chernobyl não foi um problema apenas de consequências imediatas. É um problema de longuíssimo prazo: os altos níveis de radiação na região devem durar por vários milhares de anos. E a vida das pessoas que moravam em Prypiat será para sempre afetada pelo ocorrido, seja em sua saúde física, seja pelos traumas vividos.

Pensando em tudo isso, quis trazer neste ano duas convidadas para nos falar um pouco sobre esse assunto e alguns outros correlacionados. Uma delas é tão fascinada pelo que houve em Chernobyl que acabou levando sua carreira para a área de física das radiações, estudando segurança nuclear e proteção radiológica. A outra convidada possui uma longa trajetória com trabalho em proteção radiológica. Atualmente, ambas estão se aventurando na área de medicina nuclear.

Eu poderia ter ido atrás de currículos lattes e percorridos a internet atrás de especialistas para falar desse assunto, mas acabei tropeçando em duas no quintal de casa. Literalmente.

Rosangela e Raisa Requi Jakubiak, respectivamente minha mãe e minha irmã, são ambas Físicas Médicas, um ramo da Física que lida com a radiação em um aspecto muito presente em nossas vidas: a saúde. A área das duas é a de imagens médicas, como radiografias, mamografia e tomografia, que são produzidas através da interação das radiações ionizantes com os tecidos. E a Raisa, particularmente, é uma grande interessada em Chernobyl. Ela já escreveu inclusive artigos muito bons sobre Chernobyl e os efeitos biológicos das radiações que vou deixar no final do texto para vocês consultarem. É dela o trecho da Revista Polyteck citado acima desenvolvendo os acontecimentos do acidente.

Pois vamos à nossa entrevista!

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O tempo e o vento e a epidemia

Esse texto foi sugerido pelo meu querido amigo Paulo Ugolini em uma das nossas conversas sobre estar relendo O tempo e o vento. Não é um dos meus melhores, mas, nesses tempos, acho válido compartilhar esses sentimentos.

Há alguns dias, estava lendo O Continente, primeiro tomo do maravilhoso O Tempo e o Vento de Erico Verissimo, mais especificamente o segmento A Teiniaguá. Essa parte trata da breve história do casamento de Bolívar, o filho de Bibiana Terra e do Capitão Rodrigo Cambará, com Luzia Silva, uma moça rica e educada na Corte no Rio de Janeiro que tem grande apreciação pela morte e pelo sofrimento alheio.  Eis que, em meio à  história da família Terra-Cambará, me deparo com o seguinte trecho:

Fazia uma semana, o estafeta que trazia mala do Rio Pardo contara na venda do Schultz que havia irrompido em Porto Alegre uma epidemia de cólera-morbo.

[p.409]

Erico Verissimo sempre escrevia a história fictícia de seus personagens tendo como pano de fundo a história real do Rio Grande do Sul e do Brasil. E não foi diferente com essa epidemia: o cólera-morbo chegou ao Brasil em maio de 1855 pelo Pará, tendo sido trazido por um navio português. Aos poucos, foi se espalhando pelas outras províncias, a começar pelas regiões Norte e Nordeste. Suas maiores vítimas foram pessoas escravizadas e a população mais pobre, cujas más condições de vida  – de alimentação, água contaminada, higiene e de moradia, por exemplo – favoreciam o espalhamento da doença [1].

O cólera-morbo atingiu o Rio Grande do Sul em outubro de 1855. E justamente nesse momento de epidemia, Bolívar Terra-Cambará e Luzia Silva estão em viagem a Porto Alegre. Ao lermos, ficamos aflitos, pois sabemos tão pouco sobre a situação do casal quanto Bibiana, angustiada com a demora do retorno do filho. E então vem mais um trecho:

Conheciam-se agora notícias mais detalhadas da epidemia de cólera-morbo. Tinha sido trazida do Rio por passageiros do vapor Imperatriz, que ancorara em fins de 1855 no porto do Rio Grande. A peste começara nas charqueadas de Pelotas, alastrara-se pelas localidades vizinhas e atingira Porto Alegre, onde se dizia que o número de casos fatais ia além de mil. As carroças da municipalidade andavam pelas ruas a recolher os cadáveres, que na maioria dos casos estavam de tal modo desfigurados que se tornava impossível identificá-los. Contavam-se pormenores horripilantes. Havia pessoas que eram atacadas subitamente pelo mal e caíam fulminadas nas ruas. Temia-se que muitas tivessem sido enterradas vivas, pois os médicos, os enfermeiros e os funcionários municipais estavam de tal modo cansados, tresnoitados e nervosos que nem tinham tempo para maiores verificações. Recolhiam-se os mortos às carroçadas. Abriam-se no cemitério valas comuns onde os corpos eram despejados e em seguida cobertos de terra. Havia pavor em todas as caras e em algumas pessoas a palidez e a algidez do medo eram confundidas com os sintomas da peste asiática. O Barão de Muritiba, chefe do governo provincial, estava tomando providências para evitar que o mal se alastrasse pelo resto da Província. Contratava médicos e enviava-os para vários municípios.”

[p.413]

Ler este parágrafo foi bastante perturbador. Conhecemos bem essas cenas, não? Profissionais de saúde sobrecarregados e exaustos, abertura de covas coletivas para dar conta da morte de gente demais, a busca por mais médicos. Como disse minha mãe, talvez sejam cenas a que daríamos bem menos atenção em outro momento, mas hoje é assustador, pois se assemelham muito à nossa própria realidade. Isso é importante, pois muitas vezes subestimamos os horrores da história por eles estarem longe de nós, e senti-los de forma próxima assim nos lembra de como ainda estamos sujeitos a eles.

Também é desconcertante pensar que vivemos em um tempo com muito mais condições sanitárias, uma medicina muito mais sofisticada e muito mais acesso à informação do que no século 19 que viu tantas epidemias além da de 1855, mas que mesmo assim estamos vendo os cadáveres se amontoando. Isso por causa de um governo que desde o início da pandemia desincentiva as medidas de proteção, rejeita vacinas e só aceita medicamentos cuja eficácia no tratamento não possui respaldo científico. E também de uma parcela da população que acredita nesse governo ou que simplesmente não aceita que a pandemia altere seu estilo de vida (e não, não estou falando do trabalhador do ônibus lotado e sim do jovem adulto que insiste em fazer festa). Combinando estes fatores, ao mesmo tempo em que teríamos plena capacidade de combate à pandemia – ainda mais em um país com um Sistema Único de Saúde que, ainda que imperfeito, garante ampla cobertura para a população – somos o país em que mais se morre de covid-19 no mundo hoje.

Mas o relato perturbador de Érico Veríssimo não acaba por aí. Mais para o final de A Teiniaguá, Luzia e Bolívar retornam são e salvos de Porto Alegre (lembremos que a população mais atingida era a mais pobre, de modo que não é de se estranhar que o casal rico tenha se safado da doença). Mas só fisicamente, porque Bolívar voltou para Santa Fé horrorizado com o sadismo de sua esposa, que havia insistido em ficar na capital e assistir ao caos da epidemia. Eles não fazem nenhum tipo de isolamento, mas Bibiana, precavida, isola o pequeno Licurgo, filho do casal, até que se tenha certeza de que não há ninguém doente.

Logo em seguida, o coronel Bento Amaral, latifundiário que domina Santa Fé, manda quarentenar o Sobrado dos Terra-Cambará, cercando-o de seus capangas. A justificativa era a possibilidade de Luzia e Bolívar terem trazido o cólera-morbo de Porto Alegre, mas fica a suspeita no ar (e, para Bolívar, a certeza) de que é uma forma do coronel de controlar seus inimigos históricos.

É nesse momento que surge outro elemento que nos diz respeito hoje em dia. A quarentena do Sobrado, diferentemente da nossa, realmente é de 40 dias e os Terra-Cambará ficam efetivamente isolados dentro da casa. E aos poucos Bolívar vai enlouquecendo com o isolamento e com os conflitos internos da casa, entre ele e a esposa e entre a esposa e a mãe. Como tantos de nós, que há um ano estamos ficando em casa, saindo só para o necessário, não vendo nossas famílias, sentindo falta dos amigos, sentindo medo e sem perspectiva de um fim para essa situação.

O fim de Bolívar nessa história é trágico. Não pelo cólera, mas pelo colapso emocional que o isolamento e os conflitos lhe infligiram. Nenhum de nós quer terminar como ele. Portanto, cuidemos dos nossos – mantendo o isolamento, usando nossas máscaras, mas também com ajuda àqueles a quem, como os escravizados e os empobrecidos de 1855, falta comida na mesa, e apoio emocional a quem, como Bolívar, luta para manter a cabeça no lugar.

Tudo isso vai acabar. Mas depende um pouco de cada um.


Notas:

[1]  Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar, Acesso em 31 de março de 2021. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702012000500005

Edição do livro: VERISSIMO, Erico. O tempo e o vento: parte 1: O Continente 1 / O Continente 2. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. 4ª Edição.